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Artigo – Melhor interesse do incapaz para solução de partilha extrajudicial
09 DE OUTUBRO DE 2025
É inegável que as recentes alterações promovidas na Resolução nº 35/2007 [1] do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), notadamente pela Resolução nº 571/2024, representam um marco significativo no fomento à desjudicialização e na concretização do dever estatal de buscar, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos (artigo 5º, LXXVIII [2], da Constituição c/c artigo 3º, §2º [3], do Código de Processo Civil).
Ao permitir a realização de inventários extrajudiciais mesmo com a presença de interessados menores ou incapazes, condicionada à manifestação favorável do Ministério Público (artigo 12-A, caput [4], da Resolução 35/2007-CNJ), o Conselho Nacional de Justiça abre portas para uma solução sucessória mais célere e eficiente.
Contudo, a práxis notarial e registral se depara com um desafio interpretativo. O artigo 12-A, §1º[5], da referida resolução, ao orientar o tabelião de notas a propor o pagamento do quinhão do incapaz em parte ideal de cada bem na partilha, e vedar atos de disposição, parece delinear um único caminho como condição para se obter a manifestação favorável do Ministério Público.
Surge, então, a interrogação: estaria essa diretriz a engessar a atuação do Ministério Público, cuja missão precípua é zelar pelo melhor interesse do incapaz, à luz de sua independência funcional constitucionalmente assegurada? Poderia a complexidade das situações fáticas demandar soluções diversas daquelas estritamente previstas, sem que isso obste a via extrajudicial consensual?
Independência funcional do MP: pilar da proteção
A Constituição de 1988 erigiu o Ministério Público à condição de instituição permanente, essencial à função jurisdicional, , incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127, caput [6], da Constituição). Dentre estes últimos, destaca-se a proteção dos interesses dos incapazes (artigo 178, II [7], do Código de Processo Civil). Para o fiel cumprimento de seu mister, a Carta Magna assegurou aos seus membros a garantia da independência funcional (artigo 127, §1º [8], da Constituição).
Essa independência, reiteradamente afirmada pelo Supremo Tribunal Federal [9], não é um privilégio, mas uma ferramenta indispensável para que o membro do Ministério Público possa analisar cada caso concreto de forma isenta e autônoma, livre de pressões externas ou hierárquicas no mérito de sua atuação, buscando a solução que efetivamente melhor atenda aos direitos que lhe cabe proteger.
Significa que, ao analisar um plano de partilha em inventário extrajudicial, o membro do Ministério Público não está adstrito a fórmulas pré-concebidas, mas sim vinculado ao dever de encontrar a solução mais vantajosa e segura para o incapaz naquela específica situação.
Princípio do melhor interesse do incapaz: bússola da atuação
Paralelamente, o princípio do melhor interesse do incapaz permeia todo o ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no Direito de Família e Sucessões.
Consagrado na Constituição e em diplomas legais (como o Estatuto da Criança e do Adolescente e Estatuto da Pessoa com Deficiência) e robustecido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça [10], esse princípio exige uma análise casuística e concreta.
O que é “melhor” para o incapaz não se define por regras abstratas e inflexíveis, mas pela ponderação das circunstâncias fáticas.
Nessa ordem de ideias, não raro, a atribuição de uma fração ideal em múltiplos bens pode se revelar prejudicial ao incapaz. A formação de condomínios, como sabido, é frequentemente fonte de litígios, dificulta a administração do patrimônio e pode emperrar futuras alienações necessárias ao sustento ou educação do incapaz.
Lado outro, em certos cenários, a atribuição de um bem específico ou mesmo a alienação de um ativo com o depósito judicial da quota-parte pode ser a solução que manifestamente melhor atenda aos seus interesses. Impor a fragmentação ideal do patrimônio, nesses casos, seria um retrocesso à proteção que a norma visa garantir.
Harmonizando normas: interpretação teleológica a serviço da desjudicialização
Diante desse cenário, a interpretação meramente literal do §1º do artigo 12-A da Resolução 35/2007-CNJ pode levar a um paradoxo: a opção pela via extrajudicial, criada para simplificar e agilizar, seria inviabilizada justamente nos casos em que a análise concreta do Ministério Público, pautada no melhor interesse do incapaz e exercida com independência funcional, aponta para uma solução diversa da partilha prevista na resolução.
Propõe-se, assim, uma interpretação teleológica e sistemática da norma administrativa. O fim colimado pelo Conselho Nacional de Justiça é assegurar a proteção do incapaz mediante a chancela qualificada do Ministério Público. A forma de partilha sugerida no artigo 12-A e parágrafos da Resolução 35/2007-CNJ representa um modelo geral, uma presunção relativa de adequação, mas não a única via para atingir essa finalidade protetiva.
Quando o membro do Ministério Público, de forma fundamentada e no exercício de sua independência funcional, conclui que uma partilha alternativa (seja pela adjudicação de bens específicos, seja por outra modalidade consensual que resguarde o valor patrimonial do incapaz) atende melhor aos interesses daquele que deve proteger, e havendo consenso entre todos os herdeiros, não há razão lógica ou jurídica para obstruir a opção pela via extrajudicial, lançando os interessados, necessariamente, à via jurisdicional comum.
Impedir a lavratura da escritura e o subsequente registro do título, nesse contexto, significaria preterir o princípio do melhor interesse e a independência funcional do Ministério Público em favor de uma leitura restritiva da norma administrativa, contrariando o próprio espírito da desjudicialização.
A ponderação de interesses, similar àquela exigida na fundamentação das decisões judiciais (artigo 489, §2º [11], do Código de Processo Civil, por analogia), justifica que a análise concreta e fundamentada do Ministério Público, atestando a vantagem da solução proposta para o incapaz, prevaleça sobre a forma padrão, desde que garantida a segurança jurídica do ato.
Procedimento sugerido: segurança e previsibilidade
Para conferir segurança e previsibilidade a essa abordagem harmonizadora, sugere-se que, nos casos em que se vislumbre uma partilha diversa daquela estritamente delineada no §1º do artigo 12-A da Resolução 35/2007-CNJ, o tabelião submeta previamente o expediente, através do envio da minuta ou o plano de partilha detalhado ao membro do Ministério Público, com as devidas justificativas e documentos.
O parecer favorável do Ministério Público deverá conter, de forma explícita e fundamentada, as razões pelas quais a solução proposta atende ao melhor interesse do incapaz, justificando o afastamento do modelo padrão da Resolução. Somente após essa manifestação favorável específica e robusta, a escritura seria lavrada, com menção do parecer no corpo do ato notarial e, posteriormente, submetida a registro, acompanhada da íntegra do parecer.
Este procedimento mitiga riscos, evita a lavratura de escrituras potencialmente ineficazes e previne a necessidade de submissão do ato à apreciação do juiz corregedor ou o indesejado retorno das partes à via judicial por discordância ministerial (artigo 12-A, §4º [12], da Resolução 35/CNJ c/c artigo 204 [13] da Lei nº 6.015/1973), garantindo que a vontade consensual e a proteção do incapaz caminhem juntas.
Conclusão
Em suma, a louvável iniciativa do CNJ em ampliar o alcance dos inventários extrajudiciais deve ser interpretada em harmonia com os pilares constitucionais da independência funcional do Ministério Público e o primado do melhor interesse do incapaz.
Reconhecer a possibilidade de o MP, mediante parecer fundamentado, anuir com formas de partilha diversas daquela exemplificada na resolução, desde que vantajosas ao incapaz e consensuais, não significa afrontar a norma, mas sim aplicá-la de forma teleológica e sistemática.
É tempo de consolidar a via extrajudicial como um caminho eficaz e seguro, confiando na plena capacidade do Ministério Público de, exercendo sua independência funcional, tutelar adequadamente os interesses dos incapazes, mesmo diante da miríade de situações que a vida real apresenta, superando a rigidez de fórmulas abstratas em prol da justiça material no caso concreto.
A colaboração entre tabeliães, registradores, Ministério Público e Poder Judiciário, sob essa ótica harmonizadora, fortalecerá a desjudicialização e garantirá a efetiva proteção a quem mais precisa.
[1] Resolução nº 35/2007-CNJ: Disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável por via administrativa.
[2] Constituição Federal: Art. 5º (…) LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
[3] Código de Processo Civil: Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
[4] Resolução nº 35/2007-CNJ: Art. 12-A. O inventário poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público. (incluído pela Resolução n. 571, de 26.8.2024).
[5] Resolução nº 35/2007-CNJ: Art. 12-A. O inventário poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público. (incluído pela Resolução n. 571, de 26.8.2024). § 1º Na hipótese do caput deste artigo é vedada a prática de atos de disposição relativos aos bens ou direitos do interessado menor ou incapaz. (incluído pela Resolução n. 571, de 26.8.2024)
[6] Constituição Federal: Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
[7] Código de Processo Civil: Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: II – interesse de incapaz;
[8] Constituição Federal: Art. 127. (…). § 1º – São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
[9] Supremo Tribunal Federal: (…) O princípio da independência funcional está diretamente atrelado à atividade finalística desenvolvida pelos membros do Ministério Público, gravitando em torno das garantias: a) de uma atuação livre no plano técnico-jurídico, isto é, sem qualquer subordinação a eventuais recomendações exaradas pelos órgãos superiores da instituição; e b) de não poderem ser responsabilizados pelos atos praticados no estrito exercício de suas funções (…). HC 137637/DF, rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 6.3.2018. (HC-137637)
[10] Superior Tribunal de Justiça: (…) O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que nos processos que envolvam curatela deve prevalecer o interesse da pessoa interditada em detrimento de quaisquer outras questões, podendo ser mitigado, inclusive, o princípio da perpetuatio jurisdictionis, previsto no art. 87 do CPC. (…) (CC n. 134.097/DF, relator Ministro Raul Araújo, 2ª Seção, julgado em 28/10/2015, DJe de 5/11/2015.)
[11] Código de Processo Civil: Art. 489. (…) § 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
[12] Resolução nº 35/2007-CNJ: Art. 12-A. (…) § 4º Em caso de impugnação pelo Ministério Público ou terceiro interessado, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juízo competente. (incluído pela Resolução n. 571, de 26.8.2024)
[13] Lei nº 6.015/1973: Art. 204 – A decisão da dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso competente.
Fonte: Conjur
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